Fazenda Pública não leva a sério o Direito dos Contribuintes

Roberto Duque EstradaEstava no Mineirão com meu filho de onze anos no dia 8 de julho. Foi um dia trágico para o futebol brasileiro pela acachapante derrota para uma Alemanha infinitamente superior, que simplesmente fez o que lhe cabia, goleou-nos impiedosamente. Mas sofrimento não houve; só perplexidade.

Eu tinha quase os mesmos onze anos no dia 5 de julho de 1982. Nunca sofri tanto com uma derrota do Brasil. Nunca a esquecerei. Nossos ídolos caíram inexplicavelmente. A seleção que admirávamos pela plasticidade, pela estética, e em cujo talento confiávamos, perdeu. Sim, simplesmente, perdeu. Podia empatar, a partida chegou a estar 2 x 2, mas o Brasil levou um gol (o terceiro de Paolo Rossi) e perdeu por 3 X 2. Era o fim de um sonho.

Não vivenciei a primeira Copa no Brasil, em 1950, quando se deu o Maracanazzo, o “maior e mais profundo silêncio”. Mas imagino que a persistência da dor daquela derrota — que não será “redimida” pelo vexame de 2014, com disseram alguns — se explique pela excelência do futebol jogado por aquela seleção. Tal como em 1982, em 1950 havia confiança no talento e certeza da vitória, talvez mesmo em excesso, porque éramos futebolisticamente superiores e, ainda mais, jogávamos em casa. Deveríamos ganhar, mas perdemos.

Em 2014, também em casa, aos trancos e barrancos, emocionalmente abalados, nosso time foi um arremedo de uma seleção e mereceu perder. Não existia confiança; nossa seleção não nos trazia segurança. Não nos frustramos, nem nos surpreendemos apenas nos resignamos.

Como argutamente observou Mario Vargas Llosa, após a derrota, com a lucidez que lhe é característica:

“Sin embargo, yo creo que la culpa de Scolari no es solo suya sino, tal vez, una manifestación en el ámbito deportivo de un fenómeno que, desde hace algún tiempo, representa todo el Brasil: vivir una ficción que es brutalmente desmentida por una realidad profunda”.1

A “Copa das Copas”, a cortesia anfitriã desta “gente bronzeada” dos trópicos, tudo ficou rapidamente para trás. A ficção dos folguedos se esvaiu nesse julho marcado por uma violência malsã. Estamos todos de luto, não pela derrota na Copa, mas pelo choque de realidade que se revela na derrota de um país que, a cada dia que passa, vê suas instituições mais precárias, incapazes de oferecer o mínimo de segurança jurídica aos particulares. Lamentavelmente essa é nossa realidade profunda.

Ao falarmos de segurança jurídica, ou melhor, da crescente falta de segurança jurídica, não podemos deixar de referir à obra definitiva sobre o tema, de autoria do professor Humberto Ávila, gestada e concebida sob a inspiração da melhor doutrina alemã.

Para o professor Ávila, “pode-se conceituar a segurança jurídica como sendo uma norma-princípio que exige dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, a adoção de comportamentos que contribuam mais para a existência, em benefício dos cidadãos e na sua perspectiva, de um estado de confiabilidade e de calculabilidade jurídicas, (…)”.2

O enfraquecimento desse binômio — confiabilidade e calculabilidade — está na raiz da crescente insegurança jurídica. Como bem observa Humberto Ávila há uma “carência de confiabilidade do ordenamento jurídico (Unzuverlässigkeit der Rechtsordnung). O cidadão não sabe se a regra, que era e é válida, ainda continuará válida. E, quando ele sabe disso, não está seguro se essa regra, embora válida será efetivamente aplicada ao seu caso. Regras e decisões são, pois, inconstantes. O Direito não é sério — e também deixa de ser levado a sério.”3

A isso acresce “a falta de calculabilidade do ordenamento jurídico (Unberechenbarkeit der Rechtsordnung). (…), o cidadão não sabe bem qual norma irá valer. As possibilidades de apreensão de informações sobre futuras decisões são muito pequenas. O Direito, por conseguinte, não é previsível nem calculável. O cidadão, assim, não sabe se o Direito, que já não é sério nem é levado a sério no presente, será também levado a sério no futuro”.

Ainda segundo a doutrina de Humberto Ávila:

“A confiabilidade significa o estado ideal em que o cidadão pode saber quais são as mudanças que podem ser feitas e quais as que não podem ser realizadas, evitando, dessa forma, que os seus direitos sejam frustrados. Essa confiabilidade só existe se o cidadão puder ver assegurados, hoje, os efeitos que lhe foram garantidos pelo Direito ontem, o que depende da existência de um estado de intangibilidade de situações passadas, de durabilidade do ordenamento jurídico e de irretroatividade de normas presente”5.

“A calculabilidade significa o estado ideal em que o cidadão pode saber como e quando as mudanças podem ser feitas, impedindo que aquele seja surpreendido. Essa calculabilidade só existe se o cidadão puder controlar, hoje, os efeitos que lhe serão atribuídos pelo Direito amanhã, (…)”.

Frustração e surpresa. São esses os sentimentos dos contribuintes brasileiros diante da virulência com que têm sido tratados pela fiscalização. A insegurança jurídica é assombrosa.

Exemplo paradigmático de falta de segurança jurídica é a intepretação absurdamente restritiva que os agentes fiscais têm dado às normas legais (artigos 7º e 8º da Lei 9.532/97) que permitem a dedução do ágio em operações de reorganização societária. A lei prevê que uma determinada conduta — aquisição de investimento com ágio — seguida da prática de outra conduta — incorporação — produzirá um efeito — dedução da amortização do ágio. Mas não é bem isso que o Fisco quer que ocorra porque não tolera os “planejamentos” e, por ser intolerante com a previsibilidade que só o planejamento permite, acusa o contribuinte de simulação e fraude, cobra tributos indevidos, acrescidos de multas escorchantes e ainda encaminha representações penais.

A crise de confiança na ação estatal sente-se igualmente no agora contumaz desrespeito a decisões transitadas em julgado pela administração fiscal. Contumaz porque já sucedeu no passado, através de autuações retroativas, contra contribuintes beneficiados por julgados que reconhecerem em termos definitivos a inconstitucionalidade da instituição da contribuição social sobre o lucro líquido (“CSLL”), e tem sistematicamente ocorrido no presente, em autuações dirigidas contras instituições do mercado financeiro, beneficiárias de julgados que reconhecerem a inconstitucionalidade da ampliação da base de cálculo do PIS e da COFINS pela Lei 9.718/98.

A discussão a respeito da CSLL chegou ao Superior Tribunal de Justiça e a resposta da Primeira Seção contra tamanha violência foi um acórdão exemplar, do qual extraímos as seguintes passagens:

“3. O fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade.

4. Declarada a inexistência de relação jurídico-tributária entre o contribuinte e o fisco, mediante declaração de inconstitucionalidade da Lei 7.689/88, que instituiu a CSLL, afasta-se a possibilidade de sua cobrança com base nesse diploma legal, ainda não revogado ou modificado em sua essência.
(….)

7. As Leis 7.856/89 e 8.034/90, a LC 70/91 e as Leis 8.383/91 e 8.541/92 apenas modificaram a alíquota e a base de cálculo da contribuição instituída pela Lei 7.689/88, ou dispuseram sobre a forma de pagamento, alterações que não criaram nova relação jurídico-tributária. Por isso, está impedido o Fisco de cobrar a exação relativamente aos exercícios de 1991 e 1992 em respeito à coisa julgada material” (REsp 731.250/PE, Rel. Min. ELIANA CALMON, Segunda Turma, DJ 30/4/07).

8. Recurso especial conhecido e provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do Código de Processo Civil e da Resolução 8/STJ.
(REsp 1118893/MG, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/03/2011, DJe 06/04/2011)

No caso do PIS e da Cofins das instituições do mercado financeiro a situação é ainda mais grave, porque não se trata de uma decisão posterior do Supremo Tribunal Federal em sentido oposto ao da decisão transitada em julgado. Trata-se, na verdade, de interpretação unilateral da fiscalização, ampliativa do alcance de decisões pretéritas, transitadas em julgado, pela invocação da existência de uma discussão a respeito da extensão do conceito de faturamento no caso específico dessas instituições. Referida discussão existe sim e está sendo travada no recurso extraordinário (RE 609.096/RS), no qual foi reconhecida repercussão geral em 4 de março de 2011. Sucede, porém, que referido processo até hoje não foi julgado, razão pela qual inexiste qualquer precedente que possa ser diretamente invocado para reverter as decisões passadas em julgado.

Acresce que é acintosamente afrontoso à segurança jurídica que, por autuações fiscais, se desconsidere o efeito preclusivo da coisa julgada, um dos pilares da confiabilidade. Uma eventual discussão a respeito da interpretação do alcance do conceito de faturamento deveria (e só poderia) ter sido feita no âmbito do processo judicial. Ignorou-se completamente o artigo 474 do Código de Processo Civil, nos termos do qual “passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido”.

Como ensina Humberto Theodoro Jr,, após julgado o mérito da demanda judicial não mais sujeita a recurso, “o acertamento (definição) feito pela sentença a seu respeito sujeitar-se-á à preclusão máxima que vedará sua rediscussão e rejulgamento no mesmo ou em outros processos futuros.”Sendo assim, eventuais argumentos que pudessem influenciar o mérito da decisão judicial transitada em julgado em favor das instituições do mercado financeiro, como é o caso da natureza das receitas que integram o faturamento, não podem ser inovadoramente debatidos na esfera administrativa, no contexto de autuações fiscais.

Definitivamente o direito dos contribuintes não tem sido levado a sério pelo Fisco, que segue desrespeitando as leis e às coisas julgadas para cumprir um interesse arrecadatório. Vivemos a maior crise de confiança tributária de nossa história.

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Presto aqui uma homenagem àqueles que partiram nesse triste e violento julho de 2014.

Não posso deixar de começar por Sergio Soares Sobral Filho, sócio do escritório (então Castro, Barros, Sobral e Xavier) onde comecei minha carreira, profissional da maior competência que prematuramente nos deixou e que, a meu ver, tinha na escolha dos talentos o seu maior talento. Um abraço aos seus familiares e aos sócios, especialmente aos amigos Drs. José Augusto Leal e André Oliveira, nosso colega de ABDF.

Sigo nas homenagens lamentando profundamente a partida, ainda mais prematura, do querido colega de profissão Hernani Carvalho Jr., irmão do nosso também colega de ABDF Dr. André Carvalho.

Sem João Ubaldo Ribeiro as letras e o Vasco e ficaram muito mais pobres nesse julho.

O covarde assassinato de Tintim Bittencourt Mascarenhas nos privou do convívio com uma das mais queridas cariocas.

Peço a Rubem Alves que, onde quer que esteja, ajude a reconfortar os familiares.

E um abraço a Claudia Schulz e Rodrigo Mattos, “Papa” Schulz está no céu curtindo o tetracampeonato da Alemanha.

[1] Cfr. artigo intitulado “La Careta del gigante”

[2] “Segurança Jurídica. Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário”, ed. Malheiros, São Paulo, 2011, p. 682.

[3] Cfr. op. cit. p. 60

[4] Cfr. op. cit. p. 60

[5]Cfr. op. cit., p. 683

[6] Cfr. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento – Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 577.

Roberto Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.

Fonte: Revista Consultor Jurídico

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