Obra do lago de Belo Monte espalha caos

Famílias estão ficando sem teto em Altamira
Famílias estão ficando sem teto em Altamira

“Corre, João Vitor!”, grita Maria das Graças para o filho. Sem tempo para mais nada, pega o garoto pelo braço, abre o portão e sai. O trator avança nas paredes da casa vizinha. São menos de dois minutos até tudo ir abaixo. Em três dias, será a vez de a casa de Maria das Graças cair. Ela assiste de longe, sem largar as mãos do garoto. Duas semanas atrás, um caminhão carregado de entulho derrubou o poste de sua casa e lançou a viga de madeira sobre ela, abrindo um rasgo em sua cabeça. A mulher desmaiou e foi socorrida pelo filho. Levou nove pontos. Desde então, não consegue mais dormir direito.

Em cada esquina de Altamira, histórias como a de Maria das Graças proliferam entre as pilhas de entulho e a derrubada constante de casas e barracos, que já somam 4 mil demolições. Muitas vão cair. Cerca de 1.100 casas. Há pressa. É hora de abrir espaço para encher o lago da hidrelétrica de Belo Monte. É hora de barrar o Rio Xingu.
A corrida frenética dos reassentamentos causada por Belo Monte envolve 7,8 mil famílias – ou cerca de 27 mil pessoas –, impactadas pela obra da quarta maior hidrelétrica do mundo, que neste mês, completa quatro anos de construção no coração do Pará.
A concessionária Norte Energia, dona da usina, devia ter ligado a primeira turbina em fevereiro. Atrasada, corre contra o relógio para retirar, nos próximos dois meses, milhares de imóveis que estão na orla de Altamira, liberando a área para subir o nível do rio e entregar energia a partir de novembro.
Altamira, município que vai trocar a paisagem de um rio pela de um reservatório, mais parece um cenário de guerra, com casas destruídas e escombros por todo lado. A derrubada e retirada de milhares de toneladas de material é uma exigência do licenciamento. Entre os milhares de moradores que ainda não trocaram de endereço, o clima é de apreensão, e por vezes, de revolta.
Caos – “A cidade é um caos hoje. Vai precisar de, no mínimo, três anos para voltar à normalidade”, admite o prefeito de Altamira, Domingos Juvenil (PMDB). À frente do município desde 2013, ele diz que boa parte da culpa pela convulsão que toma conta da cidade é da gestão pública. “A origem do caos é o impacto causado pela construção [DA USINA], mas muito disso se deve aos governos do Estado e do município, porque não houve ações antecipatórias que pudessem minimizar esse caos.”
Discutida há 40 anos, Belo Monte escreve linha a linha em Altamira o mesmo roteiro de outras cidades da Amazônia que já receberam grandes projetos hidrelétricos. O município, que em 2010 tinha cerca de 100 mil habitantes, viu sua população subir para mais de 150 mil pessoas. Neste período, já recebeu da concessionária Norte Energia R$ 3,092 bilhões para minimizar os impactos e melhorar as condições de vida.
O resultado mais aparente das mudanças está na retirada de milhares de famílias que viviam em palafitas precárias e insalubres nos igarapés à beira do Xingu. Quase todas as casas de madeira já foram destruídas e a população, levada para os bairros que a empresa ergueu fora da cidade. No mais, Altamira continua a ser a mesma cidade precária, incapaz de traduzir os benefícios de sediar um empreendimento hoje avaliado em R$ 32 bilhões e que terá capacidade de entregar energia para 18 milhões de famílias.
Violência – As ações compensatórias atreladas a Belo Monte acabam de ser medidas pelo Instituto Socioambiental (ISA), a partir de dados oficiais, entrevistas na região e artigos de 20 especialistas. O levantamento mostra que, entre 2011 e 2014, o número de assassinatos na cidade saltou de 48 para 86 casos por ano. Acidentes de trânsito, furtos e roubos mais que duplicaram nesse período. O principal hospital da cidade só ficou pronto em março deste ano e ainda tem pendências para operar, porque o município não tem orçamento suficiente para administrá-lo. Faltam itens como leitos para atendimento e internação.
No saneamento básico, a promessa era entregar para 100% da população uma rede de água e esgoto “igual à da Suíça”, mas o projeto ainda não saiu do papel. As estações de tratamento e as tubulações centrais estão prontas, mas as conexões com as casas foram alvo de um ano de discussões e intrigas entre a concessionária, o município e o Estado. Na última semana, resolveu-se finalmente que a prefeitura ficará responsável pelas ligações até as casas e que a Norte Energia pagará a conta.
O FIM DAS OBRAS DOS ‘BARRAGEIROS’
Os mais de 24 mil trabalhadores que hoje atuam diretamente nos canteiros de obra de Belo Monte estão em vias de fechar um ciclo. Muitos desse barrageiros – como são conhecidos os funcionários que atuam na construção de hidrelétricas – são da própria região de Altamira, mas uma grande parte desse contingente também saiu do Rio Madeira, em Porto Velho (RO), por conta das desmobilizações nas usinas de Jirau e Santo Antônio.
Ocorre que a próxima grande hidrelétrica que manteria o emprego desse exército de trabalhadores, a usina de São Luiz, prevista para ser erguida no Rio Tapajós, em Itaituba (PA), ainda está longe de se tornar realidade, dada a extrema complexidade ambiental que envolve o projeto. Sem licenciamento, rodeada por florestas protegidas e aldeias indígenas, a usina estimada em mais de R$ 30 bilhões ainda é uma incógnita.
Essa situação é agravada ainda mais por conta dos esquemas de corrupção em que se meteram as principais empreiteiras do País. Trata-se de um grupo de empresa que joga papel central na construção e na formação de sociedades para viabilizar esses empreendimentos.
A ameaça de demissões em massa é iminente. Entre funcionários diretos e indiretos, Belo Monte reúne cerca de 40 mil. Muitos deles começarão a perder emprego já no segundo semestre, quando começa a acabar o pico das obras. Em reunião em Altamira, o diretor socioambiental da Norte Energia, José Anchieta, disse aos convidados que a empresa já está contratando um programa de desmobilização de mão de obra. Sobre os funcionários da região, explicou que serão oferecidos “cursos de readequação e capacitação” para que voltem ao trabalho, seja ele qual for.
“Aqueles que vieram de fora, o CCBM (Consórcio Construtor de Belo Monte, que reúne as empreiteiras que executam as obras da hidrelétrica) tem a obrigação de, da mesma forma que os trouxe, devolvê-los ao seu lugar de origem. Eles receberão passagem de ida sem volta”, disse.
Apesar da atual realidade dos projetos, Anchieta disse que os barrageiros não terão dificuldades de se encaixar em outras obras, porque já aprenderam a construir usinas e há muitos projetos para serem executados. Ele citou como exemplo a Hidrelétrica de Marabá. Trata-se de mais uma que ainda não tem data para se viabilizar.
Fonte: Estadão

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *