Problemas com escutas e sigilo telefônico voltam à tona

Nino Toldo
Nino Toldo

O noticiário tem chamado a atenção daqueles que acompanham com preocupação o aumento indiscriminado da vigilância do Estado sobre os cidadãos. Escutas ambientais generalizadas e em presídios — inclusive atrás de privadas — com pedidos para a quebra do sigilo dos telefones de toda uma região apontada no mapa — com latitude e longitude, mas sem dizer quem são os alvos — chegam ao Judiciário, que é chamado a definir os limites do que alguns já apontam como escuta ilegal e bisbilhotice.

Está no artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal que o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, somente pode ser violado para investigação criminal, se autorizado pela Justiça. Mais: que a comunicação entre o cliente e seu advogado é privilegiada. Demanda ordem especial. Já a Lei 9.296/1996, que regulamenta esse dispositivo constitucional, diz que o pedido da quebra de sigilo, pelo Ministério Público ou pela autoridade policial, deve demonstrar com clareza a “situação objeto da investigação”, com indicação e qualificação dos investigados.

Apesar das exigências legais serem claras, pedidos e casos de grampos amplamente noticiados parecem fugir às regras. Um dos casos que colocou em discussão os limites de um pedido de interceptação é o pedido do Ministério Público do Distrito Federal para investigar se o ex-ministro José Dirceu usou celular dentro da prisão — com base em notícias de jornais de janeiro deste ano. A própria direção do presídio fez uma apuração e concluiu que o ex-ministro não utilizou o celular, mas o MP pediu ao Supremo Tribunal Federal que cinco empresas de telefonia entreguem uma lista com todas as ligações feitas e recebidas ao longo de 16 dias por duas Estações de Rádio Base (ERBs) de uma determinada coordenada geográfica.

De acordo com laudo feito por um engenheiro a pedido da defesa de José Dirceu umas da coordenadas aponta para o presídio da Papuda, onde o ex-ministro está preso devido à condenação na Ação Penal 470, o processo do mensalão. A outra localidade, porém, pega o Palácio do Planalto. O pedido do MP ainda não foi analisado pelo Judiciário, mas já é questionado.

Os advogados José Luis Oliveira Lima, Camila Torres Cesar e Rodrigo Dall’Acqua entregaram uma petição ao Supremo Tribunal Federal, junto com o laudo do engenheiro, mostrando que o pedido do MP-DF é abusivo. “Para investigar uma nota de jornal que já foi investigada, o MP-DF pede que cinco operadoras de telefonia enviem todas as ligações de celulares, efetuadas e recebidas, envolvendo todos os usuários que trabalham no Palácio do Planalto no intervalo de 16 dias. O absurdo da pretendida quebra de sigilo telefônico revela o quão indiscriminada, genérica e abusiva é a medida pleiteada pelo MP-DF”, afirma a petição.

Depois que a revista eletrônica Consultor Jurídico tentou entrar em contato com a promotora Márcia Milhomens Sirotheau Corrêa, que assina o pedido, o MP-DF enviou uma nota informando que, independente de onde caia as coordenadas do pedido do órgão, o foco é averiguar se José Dirceu cometeu ou não falta disciplinar grave com o uso do celular. “As pessoas que, eventualmente, tenham falado com ele, não cometem nenhuma infração. Mas ele, supostamente, sim. Além disso, como o inquérito que investigava a denúncia do uso de celular foi sumariamente arquivado, em cinco dias, o MP precisou aprofundar as investigações”, diz a nota.

Um dos responsáveis pela defesa de Dirceu, Rodrigo Dall’Acqua, considera o cenário alarmante. “O fato é gravíssimo. Sob o pretexto de investigar uma imaginada ligação entre a Papuda e Salvador (BA), o MP-DF pediu dissimuladamente a quebra de sigilo das ligações do Palácio do Planalto. Se não se respeita a intimidade da presidente da República, que dirá do cidadão comum”, questiona.

Na visão de advogados, entretanto, a questão não é tão simples quanto a colocada pelo MP. “Esse pedido é muito grave, pois se trata da sede do governo brasileiro, a mais alta autoridade do país. Isso esbarra no sigilo das comunicações do governo”, diz o criminalista Alberto Zacharias Toron. A advogada Heloisa Estellita lembra que a questão ainda será analisada por ministros do STF. “O abuso aconteceria muito mais na concessão sem a observância da necessidade e demais requisitos legais do que nos pedidos em si”.

Detalhes obrigatórios
O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe),
Nino Toldo, lembra que os pedidos de quebra de sigilo devem ser detalhados, para que não extrapolem além da pessoa investigada. Segundo ele, pedidos genéricos não são comuns, mas cabe ao juiz determinar a especificação quando se deparar com casos assim. “Quando não há detalhes sobre a quebra solicitada, os juízes devem determinar a especificação. Eu nunca deferi um pedido de escuta ou grampo sem estar claro de quem é o telefone e quem é o alvo”, conta.

O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), João Ricardo Costa, reforça o entendimento: “O juiz não pode dar uma autorização aleatória, que propicia uma investigação sem qualquer controle da Justiça. Não se pode violar o direito de outras pessoas que não são alvo da investigação”, complementa.

Gravações na cadeia
Também nesta semana, a imprensa apontou que o doleiro Alberto Youssef, preso preventivamente na carceragem da Polícia Federal de Curitiba, encontrou o que seria uma escuta ambiental na própria cela. O advogado de Youssef, Antônio Figueiredo Basto, divulgou uma foto de seu cliente segurando o gravador. Ele entrou no mesmo dia com um pedido na Justiça Federal para que a possível escuta fosse investigada.

Em nota, a Polícia Federal negou fazer escutas clandestinas e alegou que o dispositivo foi apreendido pela entidade na cela do doleiro. O presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), Marcos Leôncio Ribeiro, explica, no entanto, que a utilização de escutas ambientais em estabelecimentos prisionais é comum. “Não há a ideia de que o preso não possa ser alvo de escuta ambiental, inclusive em sua cela. A privacidade é um direito Constitucional, mas não existe direito absoluto”, afirma.

O presidente da associação observa que a escuta só é possível mediante autorização judicial. “Desde que siga os ritos, não há impedimento. Com ordem judicial é possível colocar escutas ambientais, interceptar correspondências e até mesmo as conversas do advogado com o cliente nos casos em que a investigação aponte que o advogado não está exercendo sua atividade e está associado à organização criminosa”, diz.

A prática realmente parece estar disseminada. No último mês, a ConJur noticiou uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que considerou legal a instalação de um gravador atrás de um vaso sanitário no acesso às celas de um presídio no Rio Grande do Sul. A 5ª Turma do STJ entendeu que na ordem constitucional não há garantias ou direitos absolutos, e é inviável a proteção ilimitada da liberdade de um cidadão em detrimento dos interesses da sociedade, o que justifica a adoção de medidas restritivas de garantias individuais em caso de defesa da ordem pública.

O presidente da Ajufe, Nino Toldo, também defende que não há direito absoluto. “Não é porque a pessoa está presa que fica imune à investigação. Ela pode ser alvo de nova investigação”, afirma.

Mesmo sendo considerada uma prática legal, a escuta em banheiro causa espanto em criminalistas experientes, como Paulo Sérgio Leite Fernandes. “Há, entre nós homens — e mulheres — duas grandes e maiores formas de intimidade: a defecação e o enlace sexual, exceção feita, é evidente, às anomalias, entre as quais destaco a coprofagia. Na medida em que a Justiça, em certas ocasiões, parece legitimar o grampeamento de contato íntimo entre presos e suas mulheres, mas [sobre] interceptação de banheiros, não sei mais o que pensar. O Poder Judiciário, eventualmente, enlouquece”.

Heloisa Estellita explica que o grampo só pode ocorrer nas hipóteses previstas na Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), e, antes dela, na Lei 9.034/1995. “O preso não perde nenhum direito de personalidade não diretamente afetado pela pena”, diz.

Cliente-advogado
Por mais que considere um absurdo em determinados casos, o criminalista Alberto Toron aponta que, se houver autorização do juiz, não há problemas na escuta em celas de prisão, mas se incomoda com a permissão de grampos em conversas entre clientes e advogados — que ele classifica como um absurdo. A inviolabilidade da relação profissional leva o criminalista a discordar do presidente da ADPF sobre a possibilidade da interceptação da conversa entre presidiários e seus defensores. “Nos parlatórios, entendo que nunca é legitima a escuta telefônica entre presos e advogados”, diz.

O presidente da AMB, João Ricardo Costa, concorda que a interceptação de conversas de advogados com clientes “é uma situação complicada”, pois o preso tem direito a conversar com seu defensor sem interferência. “Pode acontecer de forma acidental, no momento que está sendo monitorado o investigado”, diz.

Mesmo que autorizada, a escuta só pode servir para a investigação do suposto crime. O criminalista Rodrigo Dall’Acqua pondera que a interceptação jamais deve ser para investigar as estratégias usadas pelo advogado para defender seu cliente. “Mesmo com autorização judicial, não se admite escuta ambiental para bisbilhotar as estratégias de defesa do cidadão”, diz.

Fonte: Revista Consultor Jurídico

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